Por: Ògan Assogbá Luiz Alves/PROJETO ONÍBODÊ
Uma noite simples, mas profundamente ancestral. Um gesto comum, mas extraordinariamente raro nos dias de hoje. Uma caminhada curta, mas que ecoou como um tambor ancestral no peito de quem viveu, quem sentiu, quem lembrou.
Depois do toque, depois das rezas, depois do atendimento espiritual, o Seu Boiadeiro Menino - entidade de força, sabedoria e ternura - manifestado em Pai Ricardo, decidiu caminhar. Com uma garrafa de café nas mãos, rumou, a pé, à casa de Mãe Abadia de Ògun. Um gesto singelo. Uma visita fraternal. Um ritual esquecido que renasceu como brasa debaixo da cinza.
E ali, sob a meia-luz das ruas do Park Royaal em Águas Lindas - aquela iluminação que não cega, que não apressa, que convida à contemplação o passado voltou. Não como saudade paralisante, mas como memória viva, pulsante, em movimento. A cada passo, ressoava a lembrança dos tempos em Taguatinga e Ceilândia, quando, ao fim de um toque, os filhos de santo reuniam-se sem pressa, sem protocolo rígido, e simplesmente seguiam rindo, conversando, ou mesmo cantando baixinho para a próxima casa de Axé.
Era assim. Era assim que se tecia a rede da comunidade. Era assim que se fortalecia o laço entre as casas, entre os Orixás, entre os seres humanos e seus guias espirituais. Não era só ir e vir. Era estar. Era partilhar o corpo, o caminho, o silêncio, o canto, o café quente, a proteção de Ògun abrindo as estradas, de Òxóssi guardando os matos, de Iemanjá acalentando a noite com seu azul sereno.
Nessa caminhada de ontem, não havia palco, não havia plateia. Havia apenas presença. As entidades conversavam entre si, irmão com irmão, pai com filho, como quem se reconhece além do tempo, além da carne, além da dúvida. E quem caminhava ao lado, mesmo em silêncio, sentia o Axé vibrar nos pés, na respiração, no peito aberto para o sagrado cotidiano.
Hoje, é raro. A cidade cresceu. O medo entrou. O individualismo se vestiu de modernidade e chamou isso de progresso. Muitos já não sabem que um candomblé pode ser visitado como se visita um parente querido. Que um terreiro não é só espaço ritual, mas casa, acolhida, ponto de encontro entre o visível e o invisível. Que caminhar com as entidades não é exibição é ato de fé coletiva, é reafirmação de pertencimento, é resistência em movimento.
Essa noite em Águas Lindas foi mais que uma visita. Foi um resgate. Foi um ato de coragem espiritual. Foi uma lembrança viva de que o Axé sempre caminhou e caminha entre nós. Não só nos pés dos ogãs ou nas saias das mães de santo, mas nas ruas, nos becos, nas vielas, nas estradas de terra e asfalto, onde quer que haja coração aberto e pés dispostos a seguir.
Obrigado, Seu Boiadeiro Menino, por não deixar o fogo se apagar.
Obrigado, Pai Ricardo, por ser corpo de memória.
Obrigado, Mãe Abadia de Ògun, por manter a porta aberta — não só da casa, mas da tradição.
Que esse passo ressoe.
Que outras caminhadas nasçam.
Que o Axé volte a circular livre, forte, vivo — como sempre foi.
Porque afro religioso que não caminha, não conversa, não visita, não abraça não é religião de matriz africana.
É museu.
E o nosso Axé não é peça de museu.
É força.
É movimento.
É vida em constante renascimento.
Axé para todos os caminhos que ainda vamos trilhar juntos.
Que os Orixás nos iluminem – e nos lembrem sempre que a força do nosso povo está na união.
Axé!
*APOIE, DIVULGUE E INCENTIVE O ONÍBODÊ (O PORTEIRO) por uma comunicação ANTI-FACISTA, ANTI-RACISTA e de apoio à Nossa Comunidade Negra e Afro Religiosa com doações a partir de R$25,00 (vinte e cinco reais)*
CLIQUE NO LINK ABAIXO PRA APOIAR








Ja falei que o senhor tem que ser contratado por alguma assessoria de imprensa ou jornal. Caraca, escreve com muita sensibilidade.
ResponderExcluirQue registro li do pai!! Sua benção?!
ResponderExcluir